O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pela primeira vez, com base na nova Lei de Recuperação Judicial e Falências, sobre a possibilidade de a Fazenda Pública fazer parte do processo de insolvência das empresas com dívidas fiscais. O julgamento ocorreu na 4ª Turma da Corte.

Os ministros decidiram, de forma unânime, que o Fisco não precisa desistir da ação de execução fiscal para incluir os valores aos quais tem direito no processo de falência da devedora. Mas essa execução terá que ficar suspensa até o encerramento do processo falimentar – sem a possibilidade, portanto, de penhorar bens da empresa.

Esse tema foi analisado por meio de um recurso apresentado pela Fazenda Nacional contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que determinava a extinção da ação de execução fiscal (REsp nº 1.872.153).

O resultado, portanto, é favorável ao Fisco. Se tivesse que desistir da execução fiscal, ficaria impedido de apurar a responsabilidade dos sócios da empresa e, se for o caso, pedir o redirecionamento da cobrança para eles.

A 4ª Turma julga questões de direito privado. Nas turmas de direito público, no entanto, também existem decisões sobre o assunto. Em diversos processos, a Fazenda Nacional obteve o direito de optar pelas duas vias de cobrança: a execução fiscal e a habilitação do crédito na falência.

A 1ª Seção, responsável por pacificar as questões de direito público no STJ, prevê julgar esse tema amanhã em caráter repetitivo – que vincula a 1ª e 2ª Turmas do STJ e instâncias inferiores do Judiciário. A discussão ocorrerá por meio de três recursos especiais (nº 1.872.759, nº 1.981.836 e nº 1.907.397).

Há uma certa confusão na Corte sobre quais turmas têm competência para julgar essa matéria. O tema foi encaminhado para a 1ª Seção pelo ministro Moura Ribeiro – que atua na outra Seção, de direito privado.

“A competência da 1ª Seção, pois, nos termos do regimento interno desta Corte Superior, esse é o órgão julgador competente para processar e julgar recursos relativos a tributos e direito público em geral”, disse o magistrado ao analisar um desses casos, no mês de fevereiro.

Os ministros da 4ª Turma, porém, ao julgarem, agora, o mesmo tema – e proferirem a primeira decisão do STJ com base na nova lei – afirmam que a Corte Especial decidiu em duas oportunidades, no ano de 2012 e em 2020, que a competência para julgar casos que envolvam o juiz da recuperação judicial e o juiz da execução fiscal é das turmas de direito privado.

Essa confusão em torno da competência das turmas existe porque os recursos podem vir dos dois lados. Os processos de falência tramitam nas varas e câmaras empresariais. Se o Fisco tentar habilitar o crédito e receber uma resposta negativa, irá recorrer ao STJ e esse recurso será encaminhado para as turmas de direito privado – 3ª e 4ª.

Já as ações de execução fiscal tramitam nas varas de Fazenda Pública. Se a devedora apresentar recurso contra uma decisão proferida nesses processos, esse recurso será direcionado, no STJ, para as turmas de direito público – 1ª e 2ª.

A Fazenda Nacional pleiteava, na 4ª Turma, a inclusão de R$ 1,2 milhão no processo de falência da Sociedade Saúde ABC (REsp nº 1.872.153). Afirmou, no recurso, que a execução fiscal não foi “uma escolha”. Quando proposta, a falência da empresa ainda não havia sido decretada. Além disso, informou, não existe penhora ou qualquer outra garantia válida nessa ação – que encontra-se suspensa.

O procurador Gabriel Bahia, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) sustentou, durante o julgamento, que exigir uma escolha por parte do Fisco – a execução fiscal ou a habilitação do crédito na falência – poderia levar à frustração do recebimento do crédito público.

“Existem dois cenários possíveis. Caso tenha que desistir da execução fiscal, a Fazenda Pública ficaria impedida de perseguir eventuais corresponsáveis, por outro lado, se impedida de habilitar o seu crédito na falência estaria bloqueada a possibilidade de perseguir o seu crédito em face da falida”, disse.

Os ministros da 4ª Turma do STJ atenderam o pedido da PGFN. Determinaram a inclusão do crédito no processo de falência sem exigir renúncia à execução fiscal com base no artigo 7-A da Lei nº 11.101, de 2005, que foi recentemente alterada pela Lei nº 14.112, de 2020. As novas regras já estão em vigor desde o dia 23 de janeiro.

Esse dispositivo estabelece um procedimento específico, chamado “incidente de classificação do crédito público”, a ser instaurado pelo juiz da falência.

Consta que o magistrado enviará um ofício para cada Fazenda Pública credora e determinará prazo de até 30 dias para que apresente diretamente ao administrador judicial ou em juízo – a depender do momento processual – a relação completa dos créditos inscritos em dívida ativa, acompanhada dos cálculos, da classificação e das informações sobre a situação atual.

O inciso V desse artigo diz expressamente que “as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis”.

“Ficou autorizada a habilitação do crédito fiscal na falência, desde que, em contrapartida, tenha ocorrido a suspensão das execuções fiscais, exatamente para evitar a sobreposição de formas de satisfação e incorrer no óbice da dúplice garantia”, afirmou o relator do caso na 4ª Turma, ministro Luis Felipe Salomão, ao proferir o seu voto.

No processo de falência, portanto, segundo o ministro Salomão, discute-se o recebimento do crédito. Já nas ações de execução fiscal trata-se da existência, exigibilidade e valor do crédito – além de eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis.

Para Ricardo Siqueira, do escritório RSSA Advogados, especialista na área de insolvência, não faria sentido permitir que a execução fiscal ocorra de forma plena. “Porque existe uma ordem legal de preferência de pagamento que tem de ser respeitada na falência”, diz. “Está no artigo 83 da lei. Primeiro o crédito trabalhista, segundo os credores com garantia real e em terceiro aparece o Fisco. Não pode burlar essa fila”, acrescenta.

Mesmo que o Fisco conseguisse penhorar bens da empresa falida, diz o advogado, os valores não poderiam ser usados para satisfazer a execução. Teriam de ser entregues ao juiz da falência para o pagamento conforme a ordem de prioridade.

Fonte: Valor Econômico